É certo: talvez a mais legítima fonte do direito seja a revolução. Ela rompe um paradigma e dá início a outro, recomeçando a partir uma visão principiológica distinta, fundada em uma vontade que não se submete a nada, exceto ao desejo mais intenso da maioria.
Há, portanto, uma ruptura com a ordem anterior, sem limitações de qualquer natureza e a instauração de uma outra e nova ordem, a ser consolidada por novas instituições.
O baldrame axiológico revolucionário é o rompimento de mundos e de status quo, e a tomada dos espaços pelo novo. É uma ruptura que, no entanto, deve ouvir e perceber o outro, integrando-se e entregando-se ao diálogo sob pena de renovar-se a tirania pelas mãos de neófitos tiranos. Bem nos disse George Orwell e seu Napoleão, porco e não menos napoleônico.
Castanheira Neves também colaborou para aclarar a tormentosa relação entre direito e revolução: o direito é a ordem e a revolução é a anti-ordem, é a “inserção da idéia na história” (In: A revolução e o direito. A situção de crise e o sentido do direito no actual processo revolucionário).
Todo movimento revolucionário carrega consigo, portanto, um vasto manancial de forças e sentimentos que, alfim, movem a massa e induzem o movimento de cada um. É um caminhar coletivo, compartilhado e ao mesmo tempo solitário; mas sempre perpassado por raiva, frustração, vingança, amor, ódio, esperança… Da inação para a ação revolucionária, o homem age em torno de um querer convertido em poder, pela força e legitimação do grupo.
O direito revolucionário é ordem e transgressão e tudo ao mesmo tempo. Daí que direito, revolução e poesia moram na mesma rua, bebem da mesma água e do mesmo vinho. Não esse direito diminutivo da inflação das leis, da arbitrariedade e dos decisionismos, esse direito dos inócuos cursos de “ciências jurídicas” (para a Ordem, para concursos, para o tecnicismo silencioso que assola “juristas”). O direito que compartilha o copo e o vinho com a poesia é aquele que se compara ao amor de polvos e suas dezenas de braços e abraços, que aperta para amar e também para conter, que se entrelaça com a revolução para mitigar os abusos do rei e, ao mesmo tempo e contramajoritariamente, restringir a força das maiorias em favor das minorias.
Vale o alerta: direito, revolução e poesia não são bipolares. Imprevisíveis talvez. São parte da mais legítima produção humana, confusos e aparentemente incompreensíveis, tal qual um retrato impressionista de Dali ou filme de Buñel.
Herkenhoff nos lembra que a poesia e o direito são vizinhos; que só se alcança o direito pelo caminho da poesia e que a poesia se alimenta da transgressão; transgressão muitas vezes indispensável à própria realização do direito (In: Encontro do direito com a poesia).
Essa transgressão tão necessária, essa constante transição de um regime para o outro, de um sistema ao seguinte, de uma quadra histórica até a outra; o sentimento de inconstância ínsito ao viver sozinho e no mundo e tão revolucionário perpassou a obra de Florbela Espanca. A obra da escritora portuguesa é o retrato dessa complexa relação, ao menos nos sentimentos evocados. A inconstância de quem luta e não se cansa, ainda que a revolução e o direito buscados sejam, simplesmente, um grande amor:
Procurei o amor que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava.
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!
Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!
Passei a vida a amar e a esquecer…
Um sol a apagar-se e outro a acender
Nas brumas dos atalhos por onde ando…
E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há de partir também… nem eu sei quando…
Fukuiama, quando pregava o final da história, em seus achados no bunker=think tank dos Republicanos, parece ter se esquecido das forças imensuráveis que movem a revolução, que pode ser silenciosa e tomar, de surpresa, até o mais sólido castelo, convertido posteriormente em areia. E a realidade atropelou Fukuiama: não vivemos o final da história. Há contestação ideológica possível. Vivemos o final de uma revolução para entrarmos na seguinte.
Coveiros, sombrios, desgrenhados,
Fazei-me depressa a cova,
Quero enterrar minha dor
Quero enterrar-me assim nova.
Coveiros, só o corpo é novo,
Que há poucos anos nasceu;
Fazei-me depressa a cova
Que a minha alma morreu.
Engels, claro, tinha o direito à revolução como único direito histórico sobre o qual repousam todos os Estados modernos, sem exceção (In: Introdução A Luta de classes na França) Não é para tanto. Perante a revolução, apesar da revolução e justamente por causa da revolução, conforme explica Castanheira Neves.
Perante, apesar e por causa… E nos explica Florbela:
És tudo e não és nada… És a desgraça…
És quem nem sequer vejo; és um que passa…
És sorriso de Deus que não mereço…
És aquele que vive e que morreu…
És aquele que é quase um outro eu…
És aquele que nem sequer conheço…
Direito e revolução, por certo, mantém um relacionamento íntimo, tormentoso, de proximidade e afastamento, de ódio e amor, eterno e terminado e sempre intenso.
Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida…
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
Tudo no mundo é frágil, tudo passa…”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, vivo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!…”
E a revolução sem diálogo gera o distanciamento e a raiva dos futuros oprimidos ante o nascimento da nova tirania:
Tens um coração de pedra
Dentro dum peito de lama
Pois nem sabes distinguir
Quem te odeia ou quem te ama.
Por uma que te despreza,
Teu coração endoidece,
E a pobre que te quer bem
Só teus desprezos merece!
Talvez não exista outra senão Florbela Espanca, na intensidade contagiosa e até patológica de sua poesia, capaz de traduzir os sentimentos que emergem na revolução e nos revolucionários.
Tudo é vaidade neste mundo vão…
Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!
Até o amor nos mente, esta canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!…
Beijos de amor! Pra quê? ! … Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!
Só neles acredita quem é louca!
Beijos de amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!…
De fato: não é uma revolta; é uma revolução!
Delícia de texto, adorei o paralelo e compartilhei no Facebook. Florbela Espanca é como uma ventania que refresca um dia de verão!
Obrigado Priscila!! Que bom que você gostou 🙂