O direito, é claro, está em nosso cotidiano. Quando compramos pães estamos aperfeiçoando um contrato típico de compra e venda, sujeito à relação de consumo prevista no Código de Defesa do Consumidor. Quando nos manifestamos livremente e damos nossa opinião em um acalorada discussão, estamos exercendo um direito fundamental. Quando buscamos atendimento médico em um pronto-socorro, é o direito à saúde que nos dá proteção. E assim em diante.
O que me encanta, no entanto, são aquelas lições menos óbvias, aquelas que apenas tangenciam o direito ou que o observam de soslaio.
Um exemplo é o artigo publicado neste blog, que aborda as possíveis repercussões jurídicas nas histórias em quadrinhos da Turma da Mônica. Contudo, como hoje é Natal – um dos dias mais importantes do ano cristão – , talvez seja o caso de falarmos das lições que podemos extrair da vida do maior protagonista da história. Claro, algumas lições jurídicas, porque as outras certamente não caberiam neste espaço.
Vejamos. Ao longo da Bíblia nos deparamos com valores que persistem no mundo moderno e que foram introduzidas nas relações sociais a partir das pregações de Cristo. Podemos chamá-los, genericamente, de valores Cristãos.
Até então, a noção de justiça atrelava-se intimamente ao “olho por olho, dente por dente”. A partir da consolidação dos valores Cristãos emergiram, ainda que de modo muito incipiente, percepções de igualdade e fraternidade.
O julgamento de Cristo, em especial, pode nos ensinar muito e induzir um valioso debate sobre direitos e garantias fundamentais.
Explico. Não são poucas as vezes que ouço colegas ou alunos questionando o “deplorável” papel desempenhado por advogados de réus considerados, pela sociedade, como execráveis. Como seria possível – eticamente – defender tais facínoras?, é o que diz a maioria.
O julgamento promovido por Pilatos revela os riscos inaceitáveis de um julgamento sem o devido processo legal. Não importa quem seja o réu, é da integridade do Estado Democrático de Direito que o julgamento seja justo e siga os ditames e garantias previstas na Constituição. A sociedade que crucificou Cristo e foi por Ele refundada no amor, foi soterrada pelos equívocos de um julgamento sem rito. A lição, neste caso, é inexorável: a todos deve ser garantido um julgamento justo.
Outro aspecto que me leva a pensar é a pena aplicada. Diversas vezes somos levados a debater quais seriam os maiores erros judiciais: no Brasil cita-se o caso dos “irmãos Naves”, alguns mencionam o caso Dreyfus, outros os diversos condenados indevidamente à prisão perpétua nos Estados Unidos.
Entendo que a crucificação de Cristo foi o maior erro atribuível a um tribunal. Nenhum o supera. A pena de morte, irreversível – ao menos o que toca à vida pré ressurreição -, foi indevidamente aplicada. Os métodos aplicados ampliaram a dor e a humilhação; a tortura fez cair de joelhos o réu. Nenhuma sociedade moderna pode incorrer em tais equívocos.
Sempre que surge o debate sobre a pena de morte, não consigo apagar a imensa imagem da cruz que surge nos confins de meu pensamento. E das lições ali escancaradas, que insistimos em esquecer. Não menciono lições religiosas, longe disso. Não é o objetivo deste texto.
No entanto, se hoje nosso Estado é democrático e de direito, fundado nos diretos e garantias fundamentais, é porque essa história começou a ser escrita há 2012 anos. Indubitavelmente.
Feliz Natal a todos!
Com todo respeito, o espírito geral do seu texto reflete um tendência muito ruim que assola a doutrina cristã. Parece muito bonzinho, muito politicamente correto, mas é altamente destrutivo.
Querer dar uma interpretação social às escrituras é coisa de teologia da libertação, uma heresia com ares de benevolência. Querer ver na vida do Cristo um ensinamento pertinente ao Estado ou à organização da sociedade é uma porta de entrada para profundas distorções.
É esse espírito marxista que penetrou no Islã e o destruiu em sua essência a partir de 1930. Todo comportamento totalitário que se vê hoje amplamente disseminado por todo o Islã é fruto disso.
“Igualdade”, “fraternidade”, “devido processo legal”… como se Jesus fosse reformador social ou um revolucionário, preocupado com assuntos políticos.
Nem mesmo em sua cruxificação ele atribui a culpa a qualquer tribunal. Atribuiu ao povo mesmo, ao juizo de quem Pilatos o entregou. Antes de morrer orou pelo povo, que não sabia o que fazia, e pediu que fossem perdoados. Não falou nada de Pilatos nem reclamou de qualquer erro judicial. Isso, porém, é só uma particularidade do seu texto. O que é mais grave não é isso, mas o espírito geral, a mentalidade, que está alinhada com um pensamento herético, sem você saber.
Apesar da teologia da libertação ter sido condenada e excluida da doutrina por sentença papal, o seu espírito ainda domina grande parte da Igreja, ainda mais especialmente na América Latina. Essa mentalidade penetra e influencia as pessoas sem que elas saibam, mesmo as que não são cristãs praticantes e não conhecem a doutrina. Absorvem essa mentalidade de várias fontes durante toda vida. Pensam que tem opinão própria, mas apenas ecoam influências exteriores.
Veja Jonas, talvez você não tenha compreendido as intenções deste blogueiro. Note que, em alguns outros textos do blog, tratei das “repercussões jurídicas” em espaços pouco prováveis, tais como nas tirinhas da Turma da Mônica.
Não me passa pela cabeça que Maurício de Sousa tenha imaginado quaisquer das observações que fiz. Muito ao contrário.
Tampouco imagino que a Bíblia ou Cristo tenham funcionado (ou estejam funcionando) como intrumentos políticos de revolução social. Nada disso. Não sou integrante de nenhuma religião, tampouco pertenço a partidos políticos ou grupos ideológicos.
Acredito, tão-somente, que o direito, como um fenômeno de regulação social (ou de realização de justiça?) possa ser pensado e vislumbrado sob diferentes prismas, em um processo de expansão de olhares que pode tornar lúdico o aprendizado da ciência. Daí que eu tenha falado em igualdade, fraternidade ou devido processo legal, noções desconhecidas ou não caras à época.
Continuo o esclarecimento apenas para que meus leitores – e meus alunos – não sejam induzidos ao erro pela sua colaboração.
Isso porque você sugere um enviesamento que simplesmente não existe no texto.
E sugere, ainda, que este ou aquele discurso político envenenado estaria incutido no pensamento de incautos como eu, que como convenientes massas de manobra, absorveríamos passivamente esta ou aquela proposição. Nada mais errado.
O problema do seu comentário é a convicção – equivocada – de correção.
E, pior, é a tentativa de ingressar – com baldrame nessa convicção enviesada – em uma seara do saber que, ao que tudo indica, você desconhece: o direito.
Peço licença para esclarecer e evitar a perpetuação de seus equívocos. O direito romano e, em especial, seu influentíssimo Corpus Juris Civilis (cerca de 500 d.c.) foi intensamente marcado pelo cristianismo e seus valores.
O jusnaturalismo construiu-se sobre alicerces cristãos.
Santo Agostinho e São Tomás de Aquino são tidos por grandes pensadores do direito.
Os princípios gerais de Direito – ínsitos ao direito romano – e os Codex orientaram a produção do conhecimento jurídico por séculos (vg. os primeiros CC francês e alemão).
A constitucionalização do direito é fenômeno recente. E ainda assim, no Brasil, a federação é fundada na dignidade da pessoa humana, pleito dos movimentos cristãos há mais de dois séculos.
E poderia mencionar, por horas, como o cristianismo e os valore cristãos influenciaram o direito moderno. Mas me parece um exercício desnecessário, uma vez que a historiografia dessa relação fala por mim.
Enfim, entendo sua preocupação.
Contudo, é indispensável mais cuidado nas críticas, especialmente quando sugere que um fenômeno histórico – a relação entre Estado moderno (democrático de direito) e o cristianismo – seja fruto de um discurso e não de uma monumental verdade histórica.
De qualquer forma, muito obrigado pela participação. Volte e critique, reclame e reafirme o que já disse. Sinta-se no seu canto. Este espaço, por meio da dialética, pretende ser um nicho para debates de alto nível.
E, caso eu discorde, tenha certeza que o debate continuará!
Abraços,
Douglas
Agora você melhorou muito seu enfoque.
O cristianismo, sem ser em nada uma doutrina social ou política, influenciou a organização do Estado, e portanto, do direito, ao se estabelecer historicamente como a grande força civilizatória do ocidente.
Entretanto, não me parece que essa repercussão se deu na forma ou no espírito mencionados no seu texto.
Eu mesmo não sei identificar com precisão ou clareza essa influencia, já que grande parte da organização do estado e do direito ocidental é herença de roma e do pensamento clássico grego, muito mais do que da doutrina cristã. Mesmo a influência exercida pelos doutores da igreja que você mencionou é, nesse campo, mais uma “tradução cristã” de Platão e Aristóteles. Seria necessário um estudo muito duro para identificar essas influências historicamente com clareza. Porém, dúvido que essas influências estejam mesmo conforme os elementos apontados no texto.
Os institutos de direito romano se constituiram bem antes do estabelecimento da doutrina cristã. Quando essa religião tomou conta do império ele já estava em franca decadência. O apogeu da cultura romana, onde o núcleo do legado jurídico transmitido aos povos europeus se consolidou, não era influenciado por valores cristãos.
O princípio da igualdade se encontra presente desde as lições de Aristóteles, que certamente influenciou o direito romano muito mais do que Jesus. Na história do direito acho difícil sustentar a tese de que a origem do princípio da igualdade tenha mesmo relação íntima com eventos de disseminação da fé cristã.
A ideia de “fraternidade” no direito é um fenômeno moderno que ganhou força poucos séculos atrás a partir de elementos não cristãos, ou mesmo anticristãos. Não se relaciona com Jesus . Os socialistas gostam de pensar assim. Gostam de atribuir a Jesus essas ideias, mas essa interpretação socialista das escrituras é recente. Se você fizer um estudo mais aprofundado, creio que, provavelmente, vai encontrar mais forças anticristãs do que cristãs no empoderamento político da ideia de fraternidade no direto. Essa ideia desomboca policamente no aumento do tamanho do Estado, uma vez que que implica na criação de direitos (ou benesses) a serem garantidas ou protegidas pelo Estado. Por isso que as doutrinas marxistas usam esse valor como arma de guerra cultural.
A utilização do princípio da igualdade também é usada por essas forças socialistas como instrumento de dominação política, de aumento do Estado e controle da socidade. A teologia da libertação tenta também atribuir a Cristo a defesa desse direito, o que é uma heresia. Apesar de não ser esse seu enfoque, a associação dessas ideiais com os valores cristãos constitui um equívoco maior do que você está percebendo, um equívoco de mentalidade.
O mais improvável mesmo é que se possa relacionar o devido processo legal com valores cristãos. Muito menos se pode sustentar que a narrativa bíblica sobre Pilatos tenha causado alguma repercussão efetiva nessa seara.
Sei que você escreveu um texto leve, despretencioso, sem nenhuma intenção de rigorismo acadêmico, mas apenas como um comentário de natal. Porém, vejo na associação da vida de Cristo com esses valores de igualdade e fraternidade a presença de uma mentalidade alinhada com essa forma herética de pensamento, que está espraiada em grande parte da sociedade, especialmente na America Latina. Isso ocorre mesmo em muito boas cabeças, sem que essas sequer se deem conta disso. É uma influência cultural mais forte e mais perigosa do que suspeitam 99% das pessoas do ambiente acadêmico. Por isso escrevi o comentário anterior, que vejo agora ter sido muito carregado em seu tom, pelo que peço desculpas.
Ao menos, vejo em seu texto que, aparentemente, você tem a associação desses valores com a doutrina cristã como algo quase autoevidente. Talvez eu tenha lhe dado algum material para pensamento ao mostrar uma visão bem diferente. Novamente, desculpe pelo tom talvez indelicado.
Apenas uma observação. O corpus justus civilis é praticamente um marco do fim da história do direito romano, já agonizante nessa época em função da invasões bárbaras. E mesmo a constituição desse documento, e de tudo o mais que se produziu nessa etapa final do império, é um desenvolvimento do que foi produzido nas fases anteriores, não tem de forma alguma características de uma inovação ou reformulação de influência cristã. Na verdade a doutrina cristã começou a ser desenvolvida de uma forma mais sistemática mais ou menos na mesma época em que o império foi morrendo. Nem havia na época uma massa intelectual em volta da fé cristã que tivesse força suficiente para revirar institutos já bem solidificados. A influência cristã no direito romano não chega a ser tão notável assim.
O “alicerce” do jusnaturalismo é Platão, notoriamente, não o cristianismo.
Obrigado pela participação Jonas. Parece ter ficado claro que o blog não é espaço para imersões acadêmicas, mas ferramenta útil para disparar o debate mais qualificado. Minha pretensão é pensar o direito sob as mais diversas e pouco prováveis perspectivas, para que o educando/discente/leitor leigo seja capaz de identificar a ciência jurídica como um fenômeno social plenamente observável – e, portanto, mais atraente.
Com relação às suas observações: i. Mencionei o CJC romano ante sua marcante influência no direito moderno. Contudo, os valores cristãos perpassaram e influenciaram praticamente toda produção jurídica do império romano; ii. O jusnaturalismo bebeu em diversas fontes, entre elas o cristianismo, especialmente na Idade Média. Sua origem, é claro, remonta à Grécia, à “Antígona” e aos estóicos, aparentemente os primeiros a sugerir a existência de um “direito natural”. No entanto, o jusnaturalismo – como fenômeno jurídico – foi construído (ou consolidado, caso prefira) sobre baldrames romanos-cristãos, em especial a partir de Santo Tomás de Aquino, que relata a existência de uma “lei natural” antecedente às demais.
Enfim, espero que se torne um leitor assíduo do blog e que sempre participe, valorizando este espaço virtual. Será sempre um prazer.
Douglas
Outro ponto que esqueci de mencionar: é claro que os direitos e garantias fundamentais são fruto de movimentos historicamente recentes, associados ao Estado Social. Não há um liame histórico óbvio entre o cristianismo e o reconhecimento constitucional desses direitos. Isso não obsta, no entanto, que se observe os princípios insculpidos na Constituição sob a lupa dos valores cristãos. Realmente não é algo que me preocupe.
Outro aspecto de seu comentário que salta aos olhos é a associação entre direitos fundamentais e “benesses” estatais. Talvez estejamos diante de um problema meramente semântico (estou quase certo que seja isso).
De qualquer modo, prefiro esclarecer que os direitos fundamentais norteiam-se por princípios que, com o fenômeno da constitucionalização do direito, decorrem dos esteios da sociedade moderna. Vejo a positivação dos DF como conquista histórica ou, como diria Reis Novaes, como institucionalização constitucional de instrumentos de proteção em face do Estado e, até mais intensamente, de trunfos contra a maioria.
O direito moderno é mais valor e menos verbo; é um fenômeno que repercute a sociedade regulada e não o contrário. Daí que os direitos fundamentais não são benesses, porque menos constituem e mais declaram.
Como sabemos, inicialmente os direitos fundamentais foram institucionalizados com a justificativa de proteger as liberdades individuais contra o Estado. Posteriormente passaram a integrar seu rol direitos voltados a promover a “igualdade” e a “fraternidade”, que implicam, como consequência política, no robustecimento do Estado. Legitimos ou não, são um prato cheio para todo tipo de marxistas, declarados ou camuflados, puros ou derivados, convictos ou inconscientes.
A associação desse rol de direitos com os valores cristãos é um discurso próprio da teologia de libertação, encapado ainda por todas as correntes desse jaez. Essa forma de pensamento está espalhada na maioria das pessoas da América Latina, em diferentes graus e quase sempre sem terem auto-percepção a esse respeito, mesmo entre as classes bem instruídas.
Isso resume meu ponto de discordância.
Reli meu primeiro comentário e o considero realmente deselegante e mesmo com um ar de arrogância muito feio, mas agora já é tarde para corrigir.
Parabéns pelo blog. Vejo que você traz uma variedade de assuntos muito interessantes e as vezes não usuais, não convencionais, para seus leitores. É um blog muito criativo, que transmite vitalidade intelectual e entusiasmo pelo conhecimento. Dá para apostar que você é um professor diferenciado.
Jonas, não vi deselegância em seu primeiro comentário. Apenas avidez pelo tema, o que, a despeito de nossas divergências, é legítimo e louvável.
Aguardo seu retorno ao blog!
Bela discussão, alto nível e respeito. Estou adorando ler este blog.
Obrigado Priscila!