Ontem, dia 31 de outubro de 2012, o Supremo Tribunal Federal debruçou-se sobre um tema que há alguns anos atormenta parte dos trabalhadores brasileiros: o banimento do amianto crisotila nos territórios de São Paulo e Rio Grande do Sul, com fundamento em leis estaduais.
Apenas dois votos foram concluídos durante a sessão.
O voto do Ministro Ayres de Britto, com a percepção social e qualidade técnica às quais já estamos acostumados, foi pelo não provimento da ADI 3.937/SP, reconhecendo a constitucionalidade das normas atacadas.
O voto do Ministro Marco Aurélio, no entanto, causou alguma surpresa. Não pretendo aqui esmiuçar a controvérsia que subsiste, de fato, no que toca às competências legislativas de cada um dos entes federados.
Não foram esses os fundamentos que saltaram aos olhos. Espantosa foi a incursão do Ministro na avaliação jurídico-econômica do mercado brasileiro do amianto crisotila e sua avaliação das evidências científicas relacionadas ao tema.
Vamos lá. Segundo Marco Aurélio,
“[…] o Brasil ocupa o terceiro lugar na classificação mundial de produtores de amianto, sendo responsável por 20% da produção anual, segundo dados de 2011, embora só uma mina esteja em atividade, localizada no Município de Minaçu, no Estado de Goiás. Com a exportação, arrecada 80 milhões de dólares em divisas. Em tributos, são R$ 341 milhões anuais. A comercialização tem o valor de R$ 2,5 bilhões, o que representa acréscimo, a cada ano, de R$ 1,6 bilhão de reais ao Produto Interno Bruto. Atualmente, 25 milhões de residências nacionais estão cobertas com telhas de fibrocimento, as quais contêm, em média, 8% de amianto na composição. Metade das novas construções emprega o material (dados fornecidos pelo representante do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio)”.
O Ministro começou seu voto com os expressivos números do mercado do amianto no Brasil. É um argumento de poder; algo que me incomoda. Claro que a tomada de decisão deve considerar a repercussão econômica envolvida, mas não no julgamento em questão, cujos bens em debate envolvem a saúde pública coletiva e a proteção à saúde do trabalhador.
Os mercados relacionados ao narcotráfico são, certamente, mais relevantes e empregam mais cidadãos do que o amianto. Ninguém se atreve, no entanto, a sugerir que o Estado releve os danos sociais do crime.
Ora, a relação (fartamente documentada) entre a asbestose e o lavoro na indústria do amianto deveria ser suficiente para que a relevância do mercado fosse ignorada pelo Supremo. Espero que os votos seguintes absorvam esse entendimento. A livre iniciativa deve moldar-se ao direito à saúde e à proteção à saúde do trabalhador, nunca o contrário.
O Ministro prosseguiu em seu voto, destacando que,
“Na audiência pública, o único relatório efetivamente científico alusivo ao impacto do amianto sobre ambientes urbanos foi o denominado “Projeto asbesto ambiental”, coordenado pelo Dr. Mario Terra Filho, associado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. É verdade que o estudo foi parcialmente financiado pelo Instituto Brasileiro do Crisotila, o que poderia, em tese, lançar alguma suspeição sobre os resultados, mas existe razoável consenso no sentido de que a utilização do amianto na composição de telhas de fibrocimento – finalidade na qual é empregado em quase 100% dos casos – não gera maiores riscos à população em geral. É o que concluiu o citado estudo: As amostras analisadas pelo Instituto de Física da USP não identificaram nenhuma fibra ≥ 5μm nas residências avaliadas. Comparando com outros estudos, observamos que as concentrações observadas no nosso estudo estão dentro dos intervalos encontrados nos grandes centros urbanos ocidentais e dentro dos limites aceitáveis de acordo com a Organização Mundial de Saúde e as agências internacionais de controle da exposição. Em relação às avaliações da amostra dos moradores estudados, não foram encontradas alterações clínicas, funcionais respiratórias e tomográficas de alta resolução, passíveis de atribuição à inalação ambiental [de] fibras de asbesto”.
O financiamento do indigitado estudo, pelo Instituto Brasileiro do Crisotila, não lança “alguma suspeição sobre os resultados”. Torna-o suspeito.
O voto do Ministro Marco Aurélio pretendeu trazer à baila uma cientificidade que ignora o método científico. Ou seja, traveste-se em ciência, mas não encontra respaldo no método.
Nos Estados Unidos, após o paradigmático julgamento do caso Daubert v. Merrel Dow Pharmaceuticals pela Suprema Corte, os juízes tornaram-se responsáveis pela confiabilidade das provas científicas, com fundamento nas respectivas metodologias utilizadas, por intermédio de uma análise bifronte que leva em conta a fiabilidade da prova científica e sua relevância para a solução da controvérsia.
Logo, causa desconforto que o voto traga à baila, justamente, um estudo cujo financiamento partiu daquele que tem interesses econômicos imensos (como destacou o Ministro) nos resultados.
Isso porque existem fartas evidências científicas demonstrando que o patrocinador que possui interesses econômicos nos resultados de estudos científicos, tende a alterá-los conforme lhes couber. Um exemplo:
Results: 30 studies were included. Research funded by drug companies was less likely to be published than research funded by other sources. Studies sponsored by pharmaceutical companies were more likely to have outcomes favouring the sponsor than were studies with other sponsors (odds ratio 4.05; 95% confidence interval 2.98 to 5.51; 18 comparisons). None of the 13 studies that analysed methods reported that studies funded by industry was of poorer quality (Pharmaceutical industry sponsorship and research outcome and quality: systematic review; BMJ 2003; 326).
O estudo citado no voto, com efeito, não merecia outro destino senão a janela: defenestrado por não assegurar a certeza científica necessária à tomada de decisão. No entanto foi elemento central e fundamento de parte do decisum.
Mas sigamos com o voto; há muito a discutir:
“Dizia o médico Paracelso que a diferença entre o veneno e o remédio está apenas a dose. As doses a que a população fica submetida são geralmente insuficientes ao desencadeamento das doenças tipicamente relacionadas ao produto. O risco, no campo da saúde pública, é corriqueiramente definido como uma função do tempo de exposição e o grau de perigo decorrente do manuseio de certa substância. Como bem salientaram os expositores na audiência, até mesmo a água, se ingerida em excesso, pode levar o ser humano à morte – doença denominada hiponatremia. O mesmo vale para qualquer outra substância química, por mais saudável que ela possa, em princípio, parecer. O uso de material de amianto normalmente gera riscos para os trabalhadores associados à indústria de extração e produção dos produtos derivados daquele material, bem como aos serviços que pressupõem o manuseio deles, e respectivos familiares. Para o público em geral, não há indicações de que o amianto seja mais perigoso que outras substâncias igualmente conhecidas e lícitas, como o tabaco, o benzeno, o álcool, etc. Vale ressaltar que, se empregado na forma devida, o crisotila não traz qualquer risco ao usuário”.
Retórica. Não há direito sem o verbo, mas convenhamos… Água em excesso, arroz em excesso, melancia em excesso, goiabas em excesso, exercício físico em excesso, doce de leite em excesso, tudo além da dose recomendável pode gerar malefícios à saúde e causar a morte.
Fundamento falível e pueril. Não entendi com qual objetivo foi trazido aos autos.
No entanto, assiste razão ao Ministro quando afirma que o amianto, provavelmente, não é mais nocivo do que outras substâncias conhecidas e lícitas como o tabaco e o álcool. De fato. Vale recordar, no entanto, que a exposição a essas substâncias lícitas é voluntária e dotada de assentimento. O sujeito vai ao bar ou ao supermercado e compra um maço de cigarros e uma garrafa de cachaça. Conhece o tamanho do abismo adiante.
Já uma possível exposição ao amianto é involuntária, o que não é tolerado pelo direito. A comparação proposta pelo Ministro, portanto, não é válida.
O voto, no entanto, prossegue. Prossigamos em nossa análise:
“O caso se resolve pela simples observância das máximas da proporcionalidade e da razoabilidade. Descabe vedar certa atividade à iniciativa privada, por meio de decisão judicial, apenas porque o Poder Público demonstra incapacidade de fiscalizá-la de modo efetivo, pois o ato não passaria no teste de necessidade, que exige, para a consecução de determinada finalidade, a adoção da medida menos gravosa entre as que possuem similar eficácia. É preciso atentar para o fato de que há pessoas jurídicas e naturais que atendem às prescrições do Poder Público, o que prova que as medidas de controle podem ser plenamente eficazes. […] Quanto à razoabilidade, reitero o que tenho consignado sobre o princípio. Incumbe ao Supremo presumir que as pessoas agem de modo correto, de boa-fé, na condução dos negócios privados. Partir para a suposição de que empresas e indivíduos utilizarão o mineral de maneira ilícita é esperar o exorbitante, aquilo que foge ao comum da vida. Se o amianto deve ser proibido em virtude dos riscos que gera à coletividade ante o uso indevido, talvez tenhamos de vedar, com maior razão, as facas afiadas, as armas de fogo, os veículos automotores, alfim, tudo que, fora do uso normal, é capaz de trazer danos às pessoas. […] O que dizer do acidente envolvendo o césio 137 no Estado de Goiás? No caso referido, carroceiros encontraram um aparelho utilizado em radioterapia abandonado nas ruínas do Instituto Goiano de Radioterapia e, posteriormente, revenderam-no ao dono de um ferro velho. Este, desconhecedor do risco resultante do manejo do referido aparelho, retirou o césio do invólucro de chumbo e passou a utilizá-lo para as mais diversas finalidades. Segundo estimativas extraoficiais, 112.800 pessoas foram afetadas pela radiação emitida por – pasmem – apenas 93g de césio 137. Morreram o dono do ferro velho, a esposa e a filha. Presente o quadro, indago: seria o caso de banir os aparelhos de radiografia do país? ”.
Uma vez mais, retórica. Naïf. Não entendi a comparação.
Pensemos, uma vez mais, nos atos de vontade. Na voluntariedade relacionada ao uso de facas, veículos e armas de fogo.
Quem dirige um automóvel assente com os riscos envolvidos. Quem é ameaçado com uma faca ou com uma arma de fogo pode tentar se defender, buscar alternativas voltadas à proteção da vida.
Ao contrário, o amianto é um inimigo invisível, que pode consumir as entranhas de homens que, involuntariamente, respiram o malsinado pó.
Concordo que o Estado não deva ser paternalista e que a liberdade do indivíduo deva ser elevada a padrões altíssimos. No entanto, proteger o trabalhador e a coletividade de um inimigo invisível, danoso e que involuntariamente pode matar, é, sim, incumbência estatal.
Ademais, o binômio utilidade-necessidade relacionado à manutenção dos veículos automotores nas ruas está relacionado à ausência de alternativas. Para frustração de Levy Fidelix, ainda não há tecnologia que permita a construção de um aerotrem universal.
D’outro lado, a existência das armas de fogo está relacionada às vantagens competitivas que a criminalidade obteria, em face do Estado, em caso de banimento. Houvesse como eliminá-las em todas as esferas sociais, em todos os recantos do mundo, sem exceção, poderia o direito (e o Estado) dar cabo delas. Mas não é hipótese que encontra respaldo na realidade.
Finalmente, as facas. Devo ter, em minha cozinha, cerca de 5 facas afiadas, talvez mais. Calculemos, apenas por diversão, que exista uma média de 2,5 facas afiadas para cada brasileiro e o resultado soma cerca de 500 milhões de facas afiadíssimas circulando em terrae brasilis. Não tenho dados, mas não é preciso ser estatístico para reconhecer que a ofensividade relacionada às facas de cozinha é irrisória.
Finalmente, o exemplo do acidente radioativo envolvendo o Césio137. Engana-se o Ministro ao falar em “radiografia”. O equipamento que causou o acidente é o Cesapam F-3000, de finalidade radioterápica. O acidente teve natureza excepcional. É evento raro.
A radioterapia, no entanto, é eficaz e segura no tratamento de diversas doenças (em especial o câncer), mundo afora. Milhares de vidas salvas, milhões de equipamentos espalhados pelo planeta e um acidente descrito pela literatura. Com todo respeito que devo ao Ministro Marco Aurélio, mas tenho certeza que a lesividade dos aparelhos de radioterapia seja até mesmo inferior às afiadíssimas facas Ginsu!
Não é o caso do amianto crisotila, produto substituível, que matou e mata milhares de inocentes, involuntários, ano após ano, dia após dia.
Se, neste momento do voto, a intenção do Ministro era debater a razoabilidade e a proporcionalidade do banimento do amianto, creio que a fundamentação trazida à baila não foi capaz de, sequer, tangenciar o problema.
E, neste nosso iter crítico, sigamos na leitura de outro excerto do voto do Ministro Marco Aurélio:
“Merece destaque também o fato de as estatísticas de doenças relacionadas ao amianto manifestadas hoje serem decorrentes de exposições ocorridas há trinta ou quarenta anos, quando se fazia a exploração do amianto do tipo anfibólio e os parâmetros de segurança eram praticamente nulos. A evolução da legislação protetiva do trabalhador, deve-se esclarecer, é conquista recente da humanidade. Especificamente a respeito do amianto, as normas de proteção do trabalhador somente foram implementadas a partir de 1977”.
Penso que o Ministro não buscou referencias empíricas para sustentar sua afirmação. Em uma rápida (e descompromissada) busca no Pubmed, a partir dos termos “asbetos” e “exposure”, encontrei dezenas de estudos concluídos em 2010, 2011 e 2012, em cujas amostras apareciam pacientes de exposição recente. Talvez seja um fenômeno que ocorra tão somente em outras paragens; não no Brasil.
E voltemos ao voto:
“A rigor, o Supremo estaria substituindo um risco à saúde do trabalhador, fartamente conhecido e documentado, por outro, ainda ignorado pela literatura médica. No momento de fazer opções, a chave é buscar a conciliação entre benefícios e malefícios, distinguir entre riscos gerenciáveis e não gerenciáveis, entre eventos danosos reversíveis e irreversíveis”.
Com efeito Ministro. Apenas para ilustrar esta manifestação, trago à baila a Revisão Sistemática Lung function in asbestos-exposed workers, a systematic review and meta-analysis (J Occup Med Toxicol. 2011 Jul 26;6:21.), na qual a amostra avaliada somou 9.921 trabalhadores e cujas conclusões foram as seguintes:
Asbestos exposure is related to restrictive and obstructive lung function impairment. Even in the absence of radiological evidence of parenchymal or pleural diseases there is a trend for functional impairment.
Vale destacar, ainda, que uma recente revisão sistemática baseada em estudos caso-controle (Does Exposure to Asbestos Cause Ovarian Cancer? A Systematic Literature Review and Meta-analysis, Cancer Epidemiol Biomarkers Prev; 20(7); 1287–95) associou a exposição ao amianto ao aumento da prevalência de casos de câncer de ovário:
Taken without further analysis, women thought to have ovarian cancer had an increased rate in the meta-analysis if reporting having been exposed to asbestos, compared with reference populations. This result may have occurred because of disease misclassification.
Nada obstante não se tratar, em nenhum dos casos, de revisão sistemática conduzida pela Cochrane Collaboration, não há restrições metodológicas que possam macular os resultados encontrados.
Logo, concordamos (eu, o Ministro Marco Aurélio e os quase 10 mil trabalhadores e mulheres que integraram as amostras dos preditos estudos): o amianto crisotila causa sérios danos à saúde e pode matar.
Apesar disso, o Ministro sugere que a Suprema Corte brasileira está diante de um dilema insolúvel: como optar entre o amianto crisotila (que mata) e um produto substituto acerca do qual pouco sabe?
O Ministro sugere que os “riscos gerenciáveis” são a melhor opção. A asbestose e a morte.
Karl Popper nos ensinou que a verdade é inatingível, que a ciência e a verdade científica são conjunturais. Isso não significa, no entanto, que decisões são tomadas no escuro da ignorância. A melhor decisão é aquela na qual a probabilidade de erro é menor, considerando-se os resultados empiricamente obtidos, repetidas vezes.
Logo, ouso afirmar que o amianto crisotila, de acordo com a literatura científica até agora disponível, é o campo decisório com maior chance de provocar malefícios. Afinal, o que a ciência nos diz e nos assegura – ao menos atualmente – é que o amianto pode matar, enquanto seu substituto é uma incógnita. E além disso não há nada mais.
Não compartilho da atroz dúvida do Ministro Marco Aurélio. Entre a morte e a incerteza, prefiro pensar que o futuro a Deus pertence.
Muito bom, gostei!
Excelente análise crítica, amplamente defensável à luz do famoso Princípio da Precaução! Parabéns!
Gerlena,
eu mencionei Popper porque sou fão do falsificacionismo, mas o Min. Marco Aurélio nem precisaria ir tão longe. O princípio da precaução, adequadamente aplicado, solucionaria o problema. Ele preferiu analisar o tema sob a ótica da Análise Econômica do Direito e dos riscos gerenciáveis, o que, considerando o caso, foi lamentável.
Obrigado, futura mestre em Direito Ambiental!
Um abração do amigo,
Douglas