Escrevi este artigo há algum tempo.
É claro que se trata de uma grande brincadeira, um modo divertido de instigar estudantes, leigos ou mesmo juristas “macacos velhos” a repensar nossa ciência tão maltratada.
Em tempo: li, continuo lendo e, quando tiver meus filhos, adorarei apresentá-los à Turminha.
Então… divirtam-se.
Resumo: O presente artigo aborda a relação entre Direito e Arte. Traz à baila a relevância social dessa interseção e destaca o movimento Direito e Literatura. Ressalta a efetividade e relevância da linguagem utilizada pelas histórias em quadrinhos, lembrando de Luís Alberto Warat. Destaca as repercussões jurídicas inferidas nas histórias da Turma da Mônica, em seus personagens e suas situações mais comuns. Relaciona as aventuras e comportamentos dos personagens às práticas dos Estados tirânicos e absolutistas.
Palavras-chave: Direito, Arte e Literatura. Turma da Mônica. Tirania. Direitos fundamentais.
Introdução
Direito e Arte trazem em si uma surpreendente carga de interseções. A sociedade, como sistema, expressa valores e desejos que revelam-se por intermédio de atos comunicativos representados em diversas formas e intensidades.
O Direito deve ser dialógico, comunicativo, reflexivo e humanizado. Deve representar a sociedade que regula, porque é fruto de sua vontade soberana (todo poder emana do povo). O Direito é o espelho de seu povo.
D’outro lado, a Arte exprime o coração do artista e a alma de seus espectadores. É um reflexo coletivo e individual de um momento histórico, de seus desejos e sonhos. A Arte tem o poder da mudança.
Relacionar Direito e Arte significa ir além do universo enclausurado dos juristas desatentos, desinteressados ou desinformados, ultrapassando as barreiras do pensamento enviesado pelos tecnicismos. A distância prejudica o olhar acurado, mas o excesso de proximidade o faz ainda com maior intensidade, turvando a visão daqueles que insistem em vislumbrar-se exclusivamente a partir de seus próprios olhos.
Os fatos sociais (e seus olhares) devem perpassar pelo jurista e tocá-lo de modo a repercutir em ações que destaquem o Direito como um sistema que reage ao mundo que pretende regular.
Nesse universo de relações comunicativas, artísticas e jurídicas, emerge uma relação que parece infindável: entre o Direito e a Literatura. É possível enxergar o Direito na Literatura; a Literatura no Direito e a Literatura como possibilidade de expressão do Direito[1].
Godoy[2], de modo bastante ilustrativo, destaca que
[a] tradição literária ocidental permite abordagem do Direito a partir da Arte, em que pese a utilização de prisma não-normativo. Ao exprimir visão do mundo, a Literatura traduz o que a sociedade pensa sobre o Direito. A literatura de ficção fornece subsídios para compreensão da Justiça e de seus operadores.
Nesse universo de relacionamentos tão frutíferos, pouco se fala das histórias em quadrinhos. Warat, em seu “Os quadrinhos puros do Direito” nos deu uma breve lição acerca da força comunicativa dessa mídia[3].
É comum que os alunos recém chegados à academia não raramente possuam dificuldades (ou mesmo estejam despidos de habilidades) para compreender a Teoria Pura de Hans Kelsen. Há não muito tempo, corria pelos corredores da Faculdade de Direito do Largo São Francisco um famoso poema de autoria de um discente anônimo, que representava um pouco dos sentimentos que emergiam quando se falava nas obras do mestre. Seu título: “Morra Kelsen”. Warat nos mostrou que a Teoria Pura pode ser até mesmo divertida. Importa que a linguagem seja adequada.
O presente artigo pretende mergulhar nessa linguagem lúdica e simbólica, na busca pelo Direito e suas instituições em uma das histórias em quadrinhos de maior sucesso no Brasil: A Turma da Mônica.
Lançada em plena ditadura militar, o estudo de suas aventuras e desventuras pode trazer interessantes lições acerca do momento histórico vivido pelo Brasil. E, mostrar, de um modo bastante especial, como Mônica, Cebolinha e Cascão reagiam às instituições jurídico-democráticas.
1. O Direito e a Turma da Mônica
Os quadrinhos são, ao mesmo tempo, Arte e comunicação de massa. Partem de situações e personagens hiperbólicos, desenvolvendo uma seqüência dinâmica de situações em uma narrativa rítmica que alia, de modo equilibrado, texto e imagem. Na busca da simplicidade, os quadrinhos lançam mão de símbolos, onomatopéias, imagens e elementos pictóricos que lhes garantem uma universalidade de sentido[4]. A “Turma da Mônica” é um exemplo interessante dessa inserção social dos quadrinhos na história de um país.
A obra de Maurício de Sousa faz parte do ideário infanto-juvenil brasileiro desde a década de 1960, lançada em plena ditadura militar. Induz e reproduz comportamentos e valores sociais; estando o Direito, direta ou indiretamente, sempre presente no cotidiano dos protagonistas.
As personagens centrais geralmente são crianças, com algumas raras exceções. Entre elas estão a Mônica, cuja principal característica é sua força física descomunal, que a legitima como líder do grupo; o Cebolinha, quase calvo e que possui dificuldades fonéticas (troca a letra “R” pela letra “L” em seus diálogos); o Cascão, que possui fobia de água; a Magali, que come excessivamente e o Chico Bento, que representa a inocência da criança do interior de São Paulo. É possível mencionar diversos coadjuvantes, tais como Piteco, o homem das cavernas; Horácio, um pequeno dinossauro herbívoro, primeira criação de Mauricio de Sousa; dentre outros.
Cada um possui características e comportamentos que trazem ao leitor um pouco do universo lúdico infantil. Contudo, um olhar mais cuidadoso (senão subversivo) traz nuances comportamentais que podem revelar o que Maurício de Sousa e seus icônicos personagens tencionam sobre temas tão distintos como liberdade de expressão, tirania, devido processo legal, bullying, direito ambiental, direito de propriedade e sanção.
1.1. O Direito e a Mônica
Tome-se a Mônica como ponto de partida. É a líder do grupo e mantém tal liderança com fundamento na força física. É conhecida como a “dona da rua” e mantém essa condição agredindo aqueles que, porventura, critiquem-na. O poder está representado na personagem e seu exercício se perfaz por intermédio da agressividade. Na “Turma da Mônica” não há democracia, tampouco Estado de Direito. Ali prevalece a lei do mais forte.
Quando questionada ou provocada, sua reação é sempre a mesma: a punição aos desgarrados por intermédio de agressões nunca acompanhadas de direito à defesa ou oportunidade de diálogo. As condutas tipificadas pela líder autoritária são punidas sem que Maurício de Sousa cogite o exercício da conciliação ou de um procedimento justo.
O instrumento para as agressões é, em regra, um coelho de pelúcia. Aparentemente inofensivo; uma arma nas mãos da tirana.
Assim como as ditaduras travestem-se em democracias, manipulando a realidade, na “Turma da Mônica” a violência se disfarça nas vestes de um macio coelhinho. Que atende pelo nome de Sansão. Ou seria “sanção”?
1.2. O Direito e o Cebolinha
Cebolinha, por sua vez, revela a resistência ao jugo do Estado tirânico. Seu maior objetivo, contudo, é ocupar o espaço de poder detido por Mônica. Lembra os Porcos de George Orwell[5]. Cebolinha não representa a revolução, representa o golpe. Suas principais armas são a inteligência e articulação, geralmente utilizadas para arregimentar aliados na luta pelo Poder, o que o faz por intermédio de “planos infalíveis”. Cascão sempre está presente nesse processo. Invariavelmente são descobertos e violentamente reprimidos.
Cebolinha também faz uso de agressões verbais a fim de atingir seu desiderato. Para ele e seus amigos, a Mônica é gorducha, dentuça e baixinha. Quando descobertos, a repressão é idêntica: violência. Mais uma vez a repressão se perfaz como no Código de Hamurabi: olho por olho, dente por dente.
1.3. A liberdade de expressão na Turma da Mônica
Existe liberdade de expressão em Maurício de Sousa? Aparentemente não. Cascão e Cebolinha diuturnamente injuriam Mônica, o que legitimaria a sanção por ela aplicada. Trata-se de um fenômeno bastante comum entre as crianças: o bullying; espantosamente presente nos gibis da Turma da Mônica[6].
No entanto, a desproporcionalidade entre a conduta lesiva e a resposta da “dona da rua” chamam a atenção. Uma vez mais não há julgamento. Há sanção. Ou Sansão.
Na maior parte das vezes, a história encerra-se em agressão, o que demonstra uma certa despreocupação de Maurício de Sousa em demonstrar a inadequação da violência, aqui considerada como legítima defesa, justa e adequada à reprimenda das agressões verbais perpetuadas por Cebolinha.
1.4. A dona da rua
Retome-se aqui o espaço físico em que liderança da Mônica é exercida: a rua. Ela não é apenas a líder do grupo, dos amigos, das crianças de sua idade. Mônica é mais que isso. Ela é a dona da rua. Ícone publicístico, espaço do povo. Dona da Rua. Dona do Estado. Dona de nosso destino. Le rue c’est moi.
Assim é a Mônica, assim são as tiranias. Não há bens públicos. Não há Ágora. O dono da rua e dos sujeitos de direito (ou objetos de direito) é o tirano; o Estado é uma representação do governante e com ele se confunde. Não se pensa em democratizar o controle, em dissipar o poder ou em compartilhar as gestões do espaço público.
Conclusão
Na Turma da Mônica, Mauricio de Sousa retrata um momento histórico em que o Estado revelava-se implacável. As ditaduras de esquerda e de direita, espalhavam-se pelas Américas, África, Ásia, Espanha e Portugal.
A sociedade era evidentemente hierarquizada, e mais que submeter-se ao conteúdos das leis, o povo sucumbia às vontades do soberano. O Direito resumia-se às regras positivistas, alçadas à qualidade de normativas pela vontade e desejo unipessoal do ditador.
A sociedade retratada na Turma da Mônica é compatível com esse modelo de poder estatal. Aqui há o líder tirânico que se confunde com o Estado. Há a supressão de direitos fundamentais tais como a liberdade de expressão, o contraditório e a ampla defesa. Há o bloco de oposição desorganizado e desprovido de legitimidade. Há na Turma da Mônica, sobretudo, um beligerante culto à sanção. Ou ao Sansão. No Brasil, desde muito cedo, as crianças aprendem a temer a ambos.
Referências bibliográficas
ANSELMO, Z.A. Histórias em Quadrinhos. Petrópolis: Ed. Vozes, 1975, p. 38
GODOY, A.S.M. Direito & literatura : ensaio de síntese teórica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008
____. Direito e literatura. R. CEJ, Brasília, n. 22, p. 133-136, jul./set. 2003, p. 133
LUZ, D. Violência na Turma da Mônica. In: Observatório da imprensa (ISSN 1519-7670) , n. 578, 2010. Disponível em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ news/view/violencia-na-turma-da-monica#c Acesso em 09 de dezembro de 2011
SOUSA. M. Histórias em quadrinhos. Disponível em http://www.monica.com.br/ comics/tirinhas.htm. Acesso em 05 de dezembro de 2011
WARAT, L.A., CABRIADA, G.P. Os quadrinhos puros do direito. Disponível em http://www.egov. ufsc.br/portal/categoria/ tags/warat Acesso em 09 de dezembro de 2011
[1] GODOY, A.S.M. Direito & literatura : ensaio de síntese teórica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008
[2] Idem. Direito e literatura. R. CEJ, Brasília, n. 22, p. 133-136, jul./set. 2003, p. 133
[3] WARAT, L.A., CABRIADA, G.P. Os quadrinhos puros do direito. Disponível em http://www.egov. ufsc.br/portal/categoria/ tags/warat Acesso em 09 de dezembro de 2011
[4] ANSELMO, Z.A. Histórias em Quadrinhos. Petrópolis: Ed. Vozes, 1975, p. 38
[5] Refiro-me à obra “A revolução dos bichos”, de George Orwell.
[6] LUZ, D. Violência na Turma da Mônica. In: Observatório da imprensa (ISSN 1519-7670) , n. 578, 2010. Disponível em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/violencia-na-turma-da-monica#c Acesso em 09 de dezembro de 2011
Gostei muito desse artigo. Agradeço.